segunda-feira, 26 de março de 2012

O policial militar do século XXI (Parte II)

1.1 A inserção da matriz currricular nacional na formação policial militar do Estado do Rio Grande do Norte[1]
João Batista da Silva[2]

De acordo com Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), o policial militar deve ter determinadas competências e habilidades que o diferenciam das demais categorias de funcionários públicos[3]. Essa perspectiva é incorporada fortemente pela Matriz Curicular Nacional. Nela, o operador de Segurança Pública[4] é visto como um profissional sui generis, que necessita de uma seleção e formação específicas, capazes de capacitá-lo para exercer a função de mantenedor da paz pública e protetor da sociedade. No entanto, antes da sua efetiva implantação, a MCN passou por um processo de maturação e adequação, construindo-se num processo de retro-aliementação, visando atender as diversidades sócio-histórico-culturais que compõem a sociedade brasileira. Partindo desse pressuposto, foram adotadas diversas medidas a partir do ano de 1997. Assim, em um primeiro momento, o governo federal, através da SENASP, passou a investir na formação dos profissionais da área de Segurança Pública, inicialmente através dos cursos sobre Direitos Humanos, em parceria com o Comitê da Cruz Vermelha Internacional[5].
Em 1999, após a elaboração conjunta com profissionais de segurança pública que atuaram como consultores nesse processo, foram lançadas as bases curriculares (BRASIL, 2000) - documento que serviu como arcabouço teórico-reflexivo para confecção da MCN para os cursos de formação dos profissionais da área de segurança pública. Essa política adotada pela SENASP passa a funcionar como uma espécie de guia, no sentido de (re)capacitar[6] os profissionais que atuariam como multiplicadores dos novos parâmetros constantes na Matriz. Nesse ínterim, algumas estratégias foram adotadas pela SENASP, no sentido de possibilitar que o processo de maturação da futura Matriz conseguisse contemplar as especificidades da Segurança Pública brasileira, conforme relacionadas a seguir: 1. pactuação com os entes da federação; 2. criação de um grupo da MCN; 3. elaboração das diretrizes de implementação; 4. elaboração da malha curricular; 5. elaboração do documento Matriz Curricular em movimento; e 6. realização de oficinas regionais[7].
A exemplo de dezenove estados brasileiros[8], que aderiram inicialmente aos norteamentos da nova Matriz, o Rio Grande do Norte também inseriu, formalmente, desde 2004, os novos preceitos da formação policial militar nacional. Obviamente, a implantação da MCN não ocorreu sem resistências. As polícias militares brasileiras incorporaram fortemente uma cultura extremamente militarizada e hierarquizada, desde a sua formação originária, quando funcionou como a primeira guarda real, passando nos anos 30 do século passado, pelo Estado Novo, período que foi largamente utilizada como uma polícia política, e por último, mas não menos significativo, no período de excessão de 1964-85 (SILVA, 2005), quando mais uma vez é chamada a efeito para missões, eminentemente, de Segurança Nacional, divergente, por excelência da Segurança Pública, conforme enfatiza Jacqueline Muniz (2001).
Nesse sentido, não é demais destacar que diversas foram as formas de manutenção dessa cultura. Muitos são as ritualísticas que permeiam a formação policial militar. Uma delas são as canções que eram (e ainda são) entoadas pelos alunos, nos cursos de formação das Polícias Militares do Brasil, que além de incentivar a violência promovia (em) a discriminação e a negação de direitos. Senão vejamos: “Combate corpo a corpo não se pode vacilar, pega o inimigo e dá porrrada até matar. O interrogatório é fácil de fazer, pega o inimigo e dá porrada pra valer”[9]. Ou: “Homem de preto, qual é sua missão? É invadir a favela e deixar corpo no chão. Você sabe quem eu sou? Sou maldito cão de guerra. Sou treinado pra  matar. Mesmo que custe minha vida, a missão será cumprida, seja ela onde for, espalhando a violência, a  morte e o terror”. (SOARES; BATISTA; PIMENTEL,  2006, p.8-9). Ou ainda: “Boris, Boris camarada, meu Sr. Boris. O interregotório é fácil de fazer. A gente pega o animal e bate nele pra valer. E se não colaborar, bate nele até matar. Esse sangue é bom, já provei não há perigo. É melhor que café é o sangue do inimigo”[10].
A impressão primeira, é que, notadamente, essa característica maior, atendia a uma dada conjuntura social na qual essas Polícias Militares estavam insertas. Ou seja, uma estrutura, eminentemente militar foi institucionalizada para a manutenção e controle social, que na nossa hipótese, serviu, e ainda serve de sustentáculo para uma das características fundantes das Polícias Militares do país – a repressão. Nesse aspecto, é forçoso esclarecer que muitos desses princípios e valores são significativos para perpetuação da Instituição, porém, por outro, entende-se que muitos vão de encontro ao Estado Democrático, que viria posteriormente, com a abertura política no país. De alguma forma, essa abertura para o novo que implicava na adesão à MCN, nem sempre, apresentou-se explicitamente como nas justificativas dos planos dos Cursos de Formação de Soldados (CFSD) de 2004 e 2006 da PMRN. É o que se pode depreender da leitura dos trechos abaixo:


O País vive um clima de insegurança. As instituições públicas envolvidas no tema estão sendo repensadas e reestruturadas.  Este movimento de reforma é, ao mesmo tempo, promissor e ameaçador: promete melhorar a segurança pública, mas não oferece uma fórmula simples ou um mapa do caminho para se chegar lá. [...] Em 2000 a Secretaria Nacional de Segurança Pública traçou o Perfil desejado para profissionais da área de segurança do cidadão, este perfil refere-se à descrição das competências (conhecimento, habilidades e atitudes) que se pretende alcançar ao final de um processo educacional. A proposta curricular para o curso de formação de soldados (2004) segue a risca os parâmetros nacionais. (PMRN. Plano de formação de soldados. Natal: 2004, p.2)


Perceber que, ao mesmo tempo em que a Matriz Curricular trouxe a expectativa de uma nova formação policial militar, trouxe também a certeza de que essa missão não seria facilmente cumprida. Isso por que, além da MCN não ser uma fórmula pronta, como literalmente está descrita na justificativa do plano do CFSD de 2004, de algum modo, estava na contramão de uma subcultura existente na Instituição, a qual, mesmo não sendo institucionalizada, permeava (ou ainda permeia) toda formação, seja nos centros de formação, ou no processo informal, que se desenvolve cotidianamente no exercício da atividade policial militar – o currículo oculto – (BOURDIEU, 1989).
Nesse sentido, entende-se que um serviço público de qualidade não se efetiva através apenas da qualificação profissional, mas também de uma sinergia social, em que a sociedade possa contribuir como co-produtora do seu produto, in casu, a Segurança Pública, como sugere a atual Carta Magna de 1988: “[...] Segurança pública dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”. Por outro lado, é perceptível que o normalizador[11] estava especialmente preocupado com os princípios que regeriam a formação dos novos soldados potiguares, visto que, como será discorrido doravante, os mesmos profissionais que participariam dessa nova formação eram os professores e instrutores de outrora. Ou seja, será que esses profissionais já estavam preparados para atender às novas demandas pedagógicas agora exigidas para essa formação? Que posturas atitudinais, comportamentais e conceituais iriam desenvolver?
No que concerne à justificativa do plano do CFSD de 2006, apesar de conter algumas características do curso anterior, esta acusava ter havido alguma mudança em sua concepção. Em primeiro lugar, uma diferença significativa aponta para uma nova maneira de perceber o operador de segurança pública, pois, se na primeira justificativa apenas o receptor da segurança era o cidadão, desta feita, pelo menos, em tese, o novo, ou, o futuro policial, fora visto também como tal.
Pode parecer paradoxal, mas para as pessoas que fazem a segurança pública, especialmente os policiais militares, muito se houve falar de direitos. No entanto, a maioria dos seus é negada e/ou desrespeitada. É comum ouvir por parte de alguns policiais veteranos, nos centros de formação e nas academias: “o direito de um aluno é uma folha em branco”. É assim que são recebidos os bichos, os monstros, ou de forma mais eufemizada, o aluno, como são chamados os recrutas nas escolas de formação. Ora, que fundamentação teórica ou filosófica teria uma premissa, cujo principal objetivo seria diminuir, menosprezar e negar a dignidade desses profissionais, que precisam, necessariamente, conhecer e vivenciar os seus direitos como cidadãos para poder exercê-los como agentes do Estado? Como pessoas tratadas como bichos e monstros podem se imbuir de competência (e mais ainda, de valores) para respeitar e promover os direitos fundamentais da pessoa humana?
“Todos são iguais perante a lei e têm direitos, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação”[12]. A presente Declaração, apesar de não ser uma lei, tornou-se um código de conduta ética desde a sua criação, que orienta as relações entre as pessoas, grupos sociais e nações, tornando-se legítima através de suas Cartas Magnas.
Ainda nesse sentido, não é demais enfatizar que uma das formas mais perversas de se mascarar a violência é através da dissimulação, pois aquela que se efetiva através das brincadeiras e dos preconceitos disfarçados é quase imperceptível (DAMATTA, 1986), pelo menos para uma parcela majoritária da sociedade, tornando-se, na maioria das vezes, aos olhos, tanto das vítimas quanto dos agressores, praticamente impossíveis de serem combatidas, pois se naturalizam nas formas de agir e de pensar dos indivíduos (DURKHEIM, 2002). Essa violência expressa o que Pierre Bourdieu, com propriedade, denomina de violência simbólica. Isto é, “[...] a forma de poder que se exerce sobre os corpos, diretamente, e como que por magia, sem qualquer coação física; mas esta magia só atua com o apoio de predisposições colocadas como molas propulsoras, nas zonas mais profundas dos corpos”. (BOURDIEU, 2002, p.50).
Na instituição policial a violência simbólica tem efeitos mais danosos ainda, pois, inconscientemente leva o ingressante (recruta) a inculcar uma subcultura institucional como sua. Assim, os novos policiais acabam por reproduzi-la no cotidiano, nas suas formas de interações com a sociedade, em regra, com os grupos minoritários (crianças em situação de risco, homossexuais, mulheres, negros e/ou pequenos infratores), nos quais o poder autoritário e arbitrário de polícia pode operar sem que seus executores sofram quaisquer sanções. “As Instituições possuem, invariavelmente, uma cultura própria (ou uma subcultura), que resiste às modificações mais amplas operadas no contexto social. No caso da instituição policial, o conservadorismo para ser ainda mais pronunciado (ROLIM, 2009, p. 33).
Por outro lado, é visível a preocupação dos órgãos responsáveis pela formação policial em (re)estruturar e (re)qualificar seu quadro docente e reestruturar seus currículos, dado que há uma necessidade premente na capacitação dos profissionais formadores em segurança pública, o que será discutido doravante.



[1] Este artigo é a continuação do publicado na RBSP e pode ser acessado na íntegra neste link: http://www2.forumseguranca.org.br/node/28624.
[2] Capitão da PMRN, professor universitário e Mestre em Ciências Sociais.
[3] De acordo com a emenda constitucional nº 18, de 05 de fevereiro de 1998, os policiais militares enquadram-se em uma categoria distinta de profissionais. São considerados militares estaduais. Disponível em:  http://www.sefa.pa.gov.br/LEGISLA/leg/Diversa/ConstEmendas/Emendas/EmendaConst%2018.htm. Acesso em: 13 Jan. 2012.
[4] Com o advento da SENASP, em 1997, muitas nomenclaturas passaram a fazer parte do arcabouço teórico-filosófico da Segurança Pública, dentre as quais a acima citada. Entende-se, portanto como tentativa em distinguir os conceitos de Segurança Pública e Segurança Nacional, deveras estigmatizado nos anos de exceção, que será desenvolvido com mais vagar no limiar deste trabalho.
[5] A primeira edição desse curso no RN, denominado de Direitos Humanos e Direito Internacional Humanitário para as Forças Policiais e de Segurança foi realizada em 1998, sendo a sua última em 2011.
[6] Esclarece-se que sempre quando o vocábulo “(re)” anteceder o termo capacitação, estar-se-á chamando atenção para uma formação inicial precária, ou inexistente.
[7] Disponível em: http://www.acides.pe.gov.br/matrizcurricular.htm Acesso em: 12 Jan. 2012.
[8] Idem.
[9] Estrofe de uma das canções entoadas no CFSD de 1993, da PMRN. Informações cedidas por integrantes da turma e, corroboradas pelo autor, que a cosntituiu.
[10] Estrofe de uma das canções entoadas no CFSD de 2007, da PMRN. Informações coletadas no período da observação participante, adotada na pesquisa de campo da Dissertação de Mestrado, que originou este paper .
[11] Denominou-se normalizador do plano do CFSD, a equipe de policiais militares que contribuiu para confecção das premissas norteadoras daquele documento na PMRN.
[12] A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da  Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948.

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