terça-feira, 30 de julho de 2019

Formação policial-militar no Brasil


Saudações internautas!

Retomando uma temática sempre recorrente na segurança pública brasileira, compartilho aqui um trecho do capítulo 2 do livro Formação policial-militar o século XXI: diagnósticos e perspectivas.


Pensando para além do currículo oficial


Formatura matinal - Policial apresenta a tropa ao Comandante do CFAPM[1]

Fonte: arquivos fotográficos do CFAPM 2007, (SILVA, 2009, p.28)


Durante o período de formação inicial, por uma falta disciplinar, ou inadequação à doutrina militar, os alunos podem perder o direito à liberdade nos finais de semana, por meio da Licença Cassada (LC). Essa punição disciplinar impede alunos de cursos de formação nas Polícias Militares, no Brasil, de deixarem os Centros de Formação ou as Academias, aos finais de semana, devendo o referido aluno permanecer aquartelado (detido). 

O procedimento é adotado por meio de uma nota de punição, escrita, na qual é dado o direito de defesa, ao aluno, podendo esta, ser redigida pelo próprio, por oficial (dativo), ou advogado, fundamentando o porquê da transgressão escolar, buscando evitar que o aluno fique detido no quartel. 

Acerca dessa temática, escreveu AMARAL (2008)15, tentando esclarecer que o cidadão militar não deve ser tolhido de sua liberdade em hipótese alguma, a não ser por crime, após sentença transitada e julgada. Segundo o autor, os casos de punição disciplinar devem ser amparados pelo instituto do habeas corpus, tanto quanto, o são, nos casos de crimes cometidos por civis. 

Defende o autor que o cidadão militar não poder ser, de forma alguma, diferenciado do não militar, respaldando-se, para tanto, na Carta Magna, no caput do Artigo 5° que, estabelece que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...] (BRASIL, 1988). 

Segundo Amaral (2008), todas as pessoas são iguais perante a lei, contudo, o inciso LXI, da própria Constituição, que diferencia os cidadãos militares, dos demais cidadãos, é discriminatório, devendo, portanto, ser abolido já que não encontra amparo no caput do próprio artigo 5°, pois “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada por autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime, propriamente militar, definidos em lei” (BRASIL, 1988). (Grifei). 

É, pois, a partir de distorções ou legislações ambíguas que se cria e recria a imagem ou a cultura de separação ou apartamento entre o cidadão civil e o militar, causando um hiato entre cidadãos que deveriam ser vistos de forma igualitária. Em que pese haver transcorrido quase trinta anos da promulgação da CF/88, o Decreto-Lei Federal nº 88.777/1983, que regulamenta a atuação das Polícias Militares, atrelando-as ao Exército Brasileiro, continua em plena vigência, contudo após a criação da SENASP (1997), a formação e recapacitação dos profissionais de segurança pública passaram a ser norteadas por essa Secretaria, especialmente, com a institucionalização das Bases Curriculares (BRASIL, 2000) e da MCN (BRASIL, 2003), os quais são diferenciados dos demais funcionários públicos pela Emenda Constitucional n° 18. 

Ora investido da postura de investigador sociólogo/ educador (NUNES, 1978), ora da alma policial-militar, buscou-se produzir a interpretação da cultura institucional na qual adentrei e que forneceu os instrumentos para a construção de uma identidade profissional e social. 

É como algo apreendido desde a mais tenra idade, pois, em uma formação celibatária, como é a policial-militar, ou algo que o valha, incorpora-se no indivíduo, não apenas quando ingressa nos cursos de formação, mas por meio de todas as interações sociais na Corporação. É como se estivesse presente na identidade do indivíduo desde a infância, tornando-se sua própria personificação (BERG; LUCKMANN, 1985). 

Este capítulo versa, portanto, sobre a formação policial-militar, sobretudo, buscando levar o leitor(a) ao universo no qual está inserido o futuro profissional de segurança pública. Nessa empreitada investigativa e, também, analítico-crítica, o capítulo foi dividido em três partes: a primeira trata da formação policial-militar a partir de uma perspectiva sociológica; a segunda busca desvelar, por meio da técnica observação participante, o que ocorreu no Curso de Formação de Soldados (2007) e quais são os aspectos formais e informais que permeiam e influenciam essa formação, e a terceira e última parte procura analisar se há uma dicotomia e desdobramentos entre policial e militar ou vice versa.

Formação policial-militar: uma segunda socialização 

[...] depois que entrou em minha vida, a polícia nunca mais saiu. Acho que nunca vai sair. (SOARES; BATISTA; PIMENTEL, 2006). 


O processo de socialização é a porta de entrada do homem para vida em sociedade, que ocorre, inicialmente, no seio da família, pelas interações socioeducativas não formais e vai ser aprimorado na Escola, perpassando, assim, toda a vida do indivíduo, atuando de forma intensa ou sutil, na maioria das vezes, de forma naturalizada e, também, por meio da profissão que esse indivíduo escolheu, a partir da qual absorve os comportamentos sociais inerentes aos mais variados contextos (LUCKMAN; BERGER, 2003). 

Não obstante a socialização ocorrer por meio da incorporação das disposições socioculturais de forma impositiva, o indivíduo não o sente como tal, mas o deseja, pois se identifica com a realidade que o cerca, como algo naturalizado. É, portando, nessa perspectiva que a formação policial, militarizada, extremamente ritualizada, é incorporada na personalidade do indivíduo. 

Pensando para além da doutrina militar, mas, sobretudo visando analisar a temática da urgência e necessidade de uma melhor formação e qualificação profissional dos agentes de segurança pública, especialmente, o policial militar, questionava-me a respeito da razoabilidade desses instrumentos “educativos”, entre eles, a Licença Cassada, na atualidade. 

Defende-se neste livro que instrumentos como a LC devem ser banidos dos Centros  de Formação e das Academias das Polícias Militares, haja vista, uma das maiores demandas da formação policial deve ser, atualmente, a capacitação do policial para uma atuação cada vez mais próxima da sociedade. Esse princípio da proximidade pode/deve ser fundamentado, por exemplo, por meio da filosofia de Polícia Comunitária. 

Nos dias atuais essa premissa é largamente utilizada na Europa, Japão, Estados Unidos e, também, em alguns países da América Latina, com destaque para Colômbia, onde “la policia de proximidad” é um instrumento de prevenção e, consequentemente, redução dos índices de violência e criminalidade (BAYLEY, 2002). 

No Brasil, paradoxalmente, no início da carreira profissional os policiais militares são apresentados, literalmente, a esses mecanismos de tolhimento de liberdade que farão parte de toda sua atividade profissional. Após o período de formação a LC não mais será aplicada com essa nomenclatura, porém, a partir daí, serão utilizadas as detenções e as prisões, ambas, devidamente, amparadas nos Regulamentos Disciplinares das Polícias Militares (RDPM).

Com uma formação, extremamente, marcada pela doutrina do Exército Brasileiro, até os dias atuais, o Decreto-Lei Federal nº 667/1969, que reorganizou as Polícias Militares e, também, os Corpos de Bombeiros Militares, imprimiu/imprime a essas Corporações características muito mais militares do que policiais e, menos ainda, de defesa civil, aos Corpos de Bombeiros. Nesse sentido, sua formação, especialmente, na Polícia Militar, guarda nuances específicas que provocou um hiato entre polícia e sociedade (MUNIZ, 2001). 


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FONTE:

SILVA, João Batista da. Pensando para além do currículo oficial. In: Formação policial-militar no século XXI: diagnósticos e perspectivas.  Natal: Fundação José Augusto, 2017, p. 45-96.



Informações sobre como adquirir o livro

Em Natal, o livro está disponível para compra na Cooperativa Cultural, no Campus da UFRN, nas lojas da Caserna, no Alecrim e na Dominus Militaria, em Tirol, ou pela Internet clicando aqui. ou ainda pelo Whats App (84)98702-9560.



[1] Centro de Formação e Aperfeiçoamento da Polícia Militar do Rio Grande do Norte.